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Artigo – Horizontes da alienação fiduciária imobiliária no CNJ

Ricardo Campos

Inexistem dúvidas de que a forma é tema central para a validade de atos e de negócios jurídicos. Dentro do regime jurídico da alienação fiduciária, o qual é marcado por uma dinâmica de formação de microssistemas, isso não é diferente. Enquanto que agentes que integram o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) e o Sistema Financeiro de Habitação (SFH) podem elaborar instrumentos particulares com força de escritura pública, o restante dos agentes deverão observar a regra geral esculpida no art. 108 do Código Civil de formalização dos negócios jurídicos que versem sobre constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre bens imóveis.

Não por acaso o legislador seguiu esse caminho na Lei 9.514/97. Há boas razões para isso. Com o objetivo do fomento do financiamento imobiliário para pessoas de baixa renda e por serem fortemente regulados e supervisionados por órgãos governamentais, agentes que integram os microssistemas do SFI e SFH atuam de forma imparcial, pois têm exclusivo objetivo de fomentar o crédito imobiliário, ou seja, não têm interesse próprio no negócio jurídico garantido por alienação fiduciária, como outros agentes, a exemplo de construtoras, loteadoras e imobiliárias.

O equilíbrio e a rigidez decorrentes do microssistema protege as operações da judicialização por fraudes, pois entidades que representam o SFI atuam, de forma isenta, na estabilização jurídica dos contratos imobiliários em larga escala.

Sobre o tema, no mês de agosto do último ano, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) julgou em plenário, por unanimidade, improcedente o pedido de suspensão de eficácia do ato da Corregedoria Geral de Justiça de Minas Gerais, o qual restringia, nas alienações fiduciárias, o uso de instrumento particular com efeitos de escritura pública para agentes do SFI, cooperativas de crédito ou administradoras de consórcio de imóveis fulcrando argumentos na externalidade positiva em prol dos hipossuficientes e do interesse público.

Regulamentação

A regulamentação da matéria veio pela Corregedoria Nacional de Justiça ao editar o Provimento 172/2024 que, alterando o Código Nacional de Normas (Foro Extrajudicial), inseriu o artigo 440-AO, passou a prever de maneira clara que a disposição contida no artigo 38 da Lei 9.514/97 sobre os instrumentos particulares com efeitos de escritura pública possui aplicabilidade restrita ao agentes do SFI, bem como para as cooperativas de crédito e para outras exceções legais ao artigo 108 do Código Civil, tais como administradoras de consórcio de imóveis e entidades que integram o SFH.

O entendimento, que vai na esteira daquele firmado pelo colegiado, se lastreia na premissa de que instrumento público garante a segurança jurídica e  a previsibilidade esperada por todos os envolvidos nos negócios jurídicos imobiliários. Isso é particularmente relevante para os consumidores, que poderão saber de antemão quais agentes podem utilizar a via do instrumento particular com efeito de escritura pública, sem que corram o risco de futura declaração de nulidade do negócio jurídico por vício de forma. Com a decisão do colegiado, os consumidores, acima de tudo, estarão agora assessorados por terceiro imparcial na análise das escrituras de alienação fiduciária, tendo — por dever legal — obrigação de coibir abuso do poder econômico de uma das partes.

Nesse contexto, não é demais recordar que a Corregedoria Nacional possui diversas atribuições constitucionais e regimentais, dentre as quais está a realização de atividades de cunho regulatório, focadas na “expedição de atos normativos e orientações destinados ao aperfeiçoamento da prestação jurisdicional e dos serviços notariais e de registro”. A atuação deve buscar “a) densificação ou fortalecimento de princípios constitucionais ou mesmo legais; b) a ausência de antinomia de conteúdo entre o ato normativo e a normatização constitucional ou infraconstitucional para o mesmo tema”.

Nesse espeque, o Provimento 172/2024 agiu bem ao pacificar e sistematizar esse entendimento que vai ao encontro de diversas leis que tratam sobre o instrumento particular com força de escritura pública, as quais sempre restringindo seu uso para as instituições financeiras que atual com o crédito imobiliário (artigo 17-a da Lei 14.063, artigo 221, §5º da 6.015 e inciso IV, artigo 6 da Lei 14.382).

E aqui ainda vale ressaltar que qualquer tentativa de um alargamento interpretativo artificial para incorporar outras instituições dentro do sistema SFI e SFH seria não apenas ilegal e inconstitucional, mas violaria as próprias atribuições de competências funcionais de cada setor econômico. A Lei nº 4.380/64, que estabelece o Sistema Financeiro Habitacional (SFH), teve como objetivo criar uma política pública em favor do direito habitacional, editada em um cenário institucional atípico, previu exceções ao regramento geral do Código Civil, com finalidade social de garantir moradia.

Esse objetivo social é aprimorado para o propósito de facilitar a concessão de crédito, por meio da Lei nº 9.514/97 , que inaugura o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI). Trata-se de sistemas distintos mas complementares, criados em momentos diferentes do Brasil, com a semelhança de serem fechados, com objetivo imobiliário e altamente regulados pelo Estado.

Qualquer outra interpretação para além dada pela forma sistemática e adequada esculpida no Provimento 172/2024, somente seria possível com uma profunda reforma do sistema de concessão de credito imobiliário brasileiro através da legitimidade democrática do poder legislativo.

Ricardo Campos: é docente nas áreas de proteção de dados, regulação de serviços digitais e Direito Público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha), doutor e mestre em Direito pela Goethe Universität, especialista em regulação de serviços digitais, proteção de dados, direito público e regulatório, ganhador do prêmio Werner Pünder sobre regulação de serviços digitais (Alemanha, 2021) e do European Award for Legal Theory da European Academy of Legal Theory (2022), membro da Comissão de Juristas de Reforma do Código Civil brasileiro, coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional, diretor do Legal Grounds Institute. sócio do Warde Advogados, consultor jurídico e parecerista.

Fonte: Conjur

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